Confiança vs. Competência: O dilema de quem “sabe-tudo”

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Um indivíduo entra na universidade e assiste uma série de aulas, descobre disciplinas como fisiologia, anatomia e biomecânica e aprende que existe uma teoria do treinamento. Teoria na qual até meses atrás ele achava que se tratava apenas realizar os exercícios de sua preferência e aumentando as cargas de acordo com a mudança na percepção de esforço.1

Agora, em posse dessas básicas, sua percepção sobre seu conhecimento cresce, ou seja, você já se acha capaz de engajar em conversas sobre treinamento e saúde, contesta outras metodologias e cria suas próprias opiniões e teorias.

Você passa a se enxergar no topo, acima da população geral quando o assunto é saúde e treinamento.

Como você se enxerga….

Mas na realidade todo o seu “conhecimento” não é muito diferente da maioria das pessoas e na verdade é provável que comparado a uma pessoa bem-informada, você deixe a desejar.

Como as coisas realmente são……

Na época em que cursava pós-graduação um professor no qual eu admirava disse algo que alguns anos depois fui entender: “Um aluno no primeiro ano de faculdade é doutor, no segundo ano é um mestre, no terceiro ano é um especialista, no quarto ano é apenas um formando e logo depois de formado descobre que é um aluno para o resto da vida”.

Vamos dizer que, aquilo você pensa que sabe sobre a ciência do treinamento seja a imagem do planeta terra a esquerda. Colocando em outra perspectiva, o que você realmente sabe é mais para a figura da direita, um fragmento no universo. Por mais dedicado aos estudos que um aluno possa ser, esse conhecimento nunca deixará de ser um fragmento. A única mudança, e que faz toda diferença na vida de um profissional é o quanto ele pode aumentar esse fragmento.

É a diferença entre encher a mão de areia e escolher entre o menor e o maior grão, mas que ambos serão sempre grãos. Apesar desse cenário parecer desanimador, na verdade ele serve como reflexão para todo o profissional.

A fogueira do conhecimento brilha para iluminar a escuridão de nossa ignorância”Terence Mackeena

Porque você deve SABER que NÃO SABE

A quantidade de conhecimento que um ser humano pode desenvolver sobre qualquer coisa é realmente vasta. No entanto, ela é limitada por uma série de fatores como:

  1. Experiência pessoal
  2. Educação
  3. Curiosidades e Interesses
  4. Acesso a informação
  5. Memória e Retenção
  6. Especialidade
  7. Influencias Culturais e Sociais
  8. Tempo e Dedicação2

Um profissional, incluindo aquele em formação, que entende o tempo necessário para que as informações se tornem conhecimento tende a ser menos arrogante, mais humilde, mais flexível, tem uma uma visão mais holística, enxerga outros profissionais como parceiros ao invés adversários, e aproveita suas conexões para aprender e não apenas buscar reforço para suas ideias.

Mesmo as maiores referências profissionais de nossa área nunca saberão tudo. O que eles sabem é o suficiente para educar, treinar ou inspirar outros profissionais. Na verdade esses profissionais são os primeiros a reconhecer os limites de seu próprio conhecimento, mesmo com muito tempo de experiência e dedicação aos estudos. Na verdade, esse é um bom filtro para reconhecer entre os que realmente sabem e aqueles que alegam saber tudo.

A tendência de supervalorizar o próprio conhecimento é algo comum entre nós seres humanos e em certos momentos isso pode ser um aspecto positivo para gerar autoconfiança. No entanto, quando tal comportamento é repetido ele pode frear o aprendizado, pois para alguém que já sabe tudo, qual o incentivo para aprender algo novo?

Networking e o Aprendizado

Os seres humanos aumentaram a sua capacidade de raciocínio e conhecimento a partir do momento em que desenvolveram formas mais eficientes de comunicação, especialmente quando descobriram a linguagem. A linguagem permitiu maior velocidade na disseminação de informações e também que as ideias de um indivíduo pudessem ser interpretadas e absorvidas por outro. Assim, um cérebro capaz de pensar por si só não apenas era capaz de formular suas próprias ideias, mas também se beneficiar das ideias de outros. Esse foi o início do que hoje chamamos de “networking” e que tomou proporções globais com o avanço das tecnologias, especialmente da internet no século 20

Figura 4. Networking na era pré-tecnologica

Hoje, apesar dos canais de comunicação terem se multiplicado exponencialmente, as relações interpessoais presenciais continuam sendo um dos meios mais importantes de aprendizado e desenvolvimento pessoal. Portanto, ao estreitar relações com profissionais de sua área, ou áreas relacionadas de maneira periódica em forma de encontros, conversas e observações ajudam a dar vazão as suas ideias, colher outras informações, tirar dúvidas, conhecer outros pontos de vista e quem sabe reformular seus conceitos sobre determinado assunto.

Ao longo do tempo, essas simples interações se acumulam, e sem perceber, você se torna um profissional mais experiente e maduro, transformando o que no início eram apenas informações em real conhecimento. A inteligência coletiva sempre supera a individual.

Como a informação se transforma em conhecimento

O processo pelo qual a informação se torna conhecimento depende de alguns fatores como, a complexidade da informação, a habilidade que um indivíduo tem para entrender e integrar a informação e o contexto no qual ela é aprendida. Vou listar algumas considerações abaixo que ilustram esse processo:

Reconhecimento imediato

As vezes uma informação é rapidamente reconhecida e aceita pois ela se alinha com um conhecimento pré-existente ou é auto-evidente. Por exemplo: começar a correr periodicamente aumenta a capacidade aeróbia de um individuo.

Repetição e Reforço

Quando uma informação é mais detalhada e incorpora outros fatores, para solidificar o aprendizado é preciso rever a mesma o quanto for necessário até que ela seja consolidada. Por exemplo: O tempo de contato no solo durante um sprint de velocidade máxima depende de fatores individuais como força máxima, taxa de desenvolvimento de força, elasticidade, técnica etc.

Contexto e Aplicação

O conhecimento é geralmente mais significativo quando aplicado em um contexto relevante. Aprender sobre fatos de maneira isolada pode não constituir um real conhecimento até que seja utilizado para resolver um problema ou entender um fenômeno. Por exemplo: Um salto horizontal pode gerar forças de impacto de até 10x o peso corporal. Assim, melhorar a força máxima de um individuo pode ajudá-lo a absorver melhor os impactos dos saltos, melhorar o desempenho e previnir lesões em membros inferiores.

Pensamento Crítico e Integração

Conhecimento não é apenas sobre memorizar fatos mas sim entender a correlação e entre fragmentos de informação, avaliá-las de forma crítica e intregrá-las ao conhecimento já existente sobre esse assunto. Isso leva tempo e requer um engajamento cognitivo ativo. Por exemplo: Ao analisar os dados de uma avaliação biomecânica de um atleta, como esses resultados influenciam seu desempenho? Como montar um programa de treino com base nos dados obtidos na avaliação?

Experiência e Experimentação

Alguns tipos de conhecimento, especialmente os práticos e experimentais, requerem “mão na massa” e a experimentação para se tornarem completamente compreendidos e integrados. Por exemplo: Ensinar técnicas de levantamento olímpico para um individuo requer do profissional certa experiência prática tanto no ensino prévio de outros individuos como na sua própria experiência como praticante.

Domínio e Expertise

Em muitas áreas, para se tornar um “expert” ou obter o máximo de domínio sobre um assunto requer anos de estudo, prática e experiência. O REAL expertise envolve um conhecimento profundo a amplo sobre o tema. Por exemplo: Se você se prepara para escalar o Monte Everest e precisa escolher um guia para acompanhá-lo nessa jornada, quem você escolheria? Um guru polêmico e carismático da internet que já subiu até o acampamento base e postou milhares de fotos da sua aventura ou um guia local com 30 anos de experiência guiando pessoas na mesma jornada?

Atualização e Revisão

O conhecimento não é estático. Ele evolui e muda conforme novas informações se tornam disponíveis ao longo do tempo. Apenas lembre que um dia a humanidade acreditava que o sistema solar seguia um modelo geocêntrico e os primeiros a cientistas a refutarem essa idéia foram acusados heresia e condenados a prisão. Hoje qualquer criança sabe a terra orbita ao redor do sol e não o contrário.

Fatores Sociais e Culturais

Os fatores sociais e culturais influenciam o que é considerado conhecimento. Em alguns casos um certo tipo de conhecimento pode ser aceito ou recusado de acordo com as crenças e normas vigentes em uma cultura. Por exemplo: Até pouco tempo atrás poucos brasileiros conheciam as regras do futebol americano e beisebol, dois esportes norte americanos e qualquer criança nascida nos Estados Unidos aprende as regras logo cedo na escola. No Brasil, o futebol é o esporte mais popular e por essa razão a maioria da população entende as regras básicas desse esporte.

Conclusão

Não há nenhuma real razão para que qualquer indivíduo se comporte como um “sabe-tudo”. E é bem comum identificar esse comportamento naqueles menos experientes.

A simplicidade do expert pode ser vista como ignorância por um novato – Bruce Lee

Confiança sem competência não se sustenta por muito tempo, pois um trabalho malfeito ou uma tarefa mal executada é logo percebida pelos outros. Por outro lado, a competência gera confiança que gera bons resultados que gera mais competência etc. Esse é um ciclo virtuoso daqueles que sabem que serão alunos para o resto da vida.

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